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15 de abr. de 2013

Trypanosoma cruzi e doença de Chagas - Parte I


1.0 INTRODUÇÃO

            A doença de Chagas ou tripanossomíase americana é causada pelo protozoário flagelado Trypanosoma cruzi, cujo ciclo de vida transcorre entre insetos vetores reduvídeos e hospedeiros mamíferos. A Organização Mundial de saúde classifica a doença de Chagas entre as treze doenças tropicais mais negligenciadas, constituindo um importante problema social e econômico na América Latina.
            O ciclo natural ocorre exclusivamente nas Américas, onde o inseto vetor está presente. Com base no achado de DNA do parasito em tecidos de múmias de civilizações pré-colombianas, acredita-se que T. cruzi infecte populações humanas há 9.000 anos.

            A doença de Chagas foi descrita pela primeira vez, em 1909, pelo médico e cientista brasileiro Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas. Em um caso único na história da medicina, Carlos Chagas descreveu, além da doença, seu agente etiológico, o ciclo de transmissão, os hospedeiros vertebrados, os vetores e as manifestações clínicas da fase aguda no primeiro caso humano estudado (a menina Berenice, de 02 anos de idade).

2.0 ASPECTOS BIOLÓGICOS

            De acordo com a classificação tradicional de Norman Levine, T. cruzi pertence à ordem Kinetoplastidae, que reúne protozoários com cinetoplasto, uma estrutura composta de DNA mitocondrial (kDNA). Nessa ordem, o T. cruzi localiza-se na família Trypanosomatidae, que reúne organismos com o kDNA em forma de rede. Todos os tripanossomatídeos são parasitos.
            O kDNA de T. cruzi representa aproximadamente 30% do total de DNA da célula, arranjado em maxicírculos e minicírculos. O cinetoplasto compreende cerca de 50 maxicírculos, grandes estruturas de DNA circular com aproximadamente 20.000 pares de bases, além de cerca de 20.000 minicírculos, estruturas menores de DNA circular, com cerca de 1.500 pares de bases. Os maxicírculos compreendem genes que codificam proteínas mitocondriais, no entanto, não codificam as mensagens completas para a síntese dessas proteínas, devendo ser editadas (adição ou remoção de uridinas) para permitir a síntese de proteínas funcionais. O processo de edição depende de uma série de fatores, entre eles a ação de moléculas de RNA transcritas a partir dos minicírculos, chamadas RNA guia.

2.1 Hospedeiros
            Os primeiros reservatórios conhecidos do T. cruzi, além dos humanos, foram o tatu, o cão e o gato, estudados por Chagas em 1909. Hoje já se sabe que sete ordens de mamíferos apresentam espécies que foram encontradas infectadas pelo T. cruzi, dos quais 10 são domésticos e 71 silvestres. De todos eles, os reservatórios silvestras mais importantes são o tatu e o gambá. E entre os domésticos destacam-se o cão, o gato e o rato (além dos próprios humanos). As aves e os répteis são refratários ao T. cruzi, não funcionando como reservatórios.

2.2 Vetores
            Os vetores da doença de Chagas são insetos hemípteros hematófagos da família Reduviidae. Os insetos adultos recebem, em diferentes regiões do Brasil, os nomes de barbeiro, bicudo, chupão, chupança e vários outros.

            Embora com grandes semelhanças, algumas características simples diferenciam os triatomíneos dos hemípteros predadores e fitófagos. A diferença mais evidente está na probóscida. A probóscida dos triatomíneos hematófagos é reta e curta, composta de três seguimentos, não ultrapassando o primeiro par de patas do inseto quando em repouso. Os predadores também apresentam a probóscida curta, com três segmentos e não ultrapassando o primeiro par de patas, porém, esta é curva. Já a probóscida dos fitófagos é reta e longa, com quatro seguimentos e ultrapassando o primeiro par de patas quando em repouso.
            Todos os triatomíneos são potenciais vetores da doença de Chagas. Dentre as espécies descritas, existem aquelas de hábitos domiciliares, domésticos e peridomiciliares, que são as responsáveis por fazer a interligação entre o ciclo silvestre e o ciclo domiciliar na transmissão. Vem ocorrendo domiciliação progressiva de certas espécies de triatomíneos, o que pode mudar o padrão de transmissão da doença.

            No Brasil, as espécies vetoras mais importantes são Triatoma infestans, Panstrongylus megistus e Triatoma brasiliensis. No norte da América do Sul e em diversos países da América Central, Rhodnius prolixus é o principal vetor da doença de Chagas. A diferenciação entre os três principais gêneros pode ser feita comparando-se a posição da inserção da antena. Em Panstrongylus, é inserção da antena é junto a base dos olhos. No gênero Triatoma, a inserção da antena ocorre em posição intermediária entre os olhos e o clípeo. Já em Rhodnius, a antena está inserida na extremidade anterior do clípeo, longe dos olhos.
            T. infestans é o principal vetor do T. cruzi em grande parte da América do Sul, sendo os adultos capazes de voar, mas não atingem grandes distâncias. O T. brasiliensis é um importante vetor da doença de Chagas no sertão nordestino. Já o P. megistus apresenta ampla distribuição geográfica no Brasil, sendo o principal vetor da doença de Chagas em certas áreas endêmicas, especialmente na Bahia e em Minas Gerais.

2.3 Agente etiológico
            T. cruzi apresenta grande diversidade biológica, associada à sua distribuição geográfica, ao grande número de mamíferos que podem ser infectados, a variedade de manifestações clínicas e de resposta ao tratamento em pacientes. Desde a década de 1960, observa-se grande polimorfismo biológico e de comportamento em T. cruzi.

            Com base em tamanhos de produtos de digestão de kDNA, foram propostos, na década de 1980, os agrupamentos conhecidos como esquizodemas. No final da década de 1990, a partir da análise de seqüências dos genes de RNA ribossômico, observou-se que T. cruzi podia ser classificado em dois grupos majoritários (T. cruzi Ie T. cruzi II, com alguns isolados híbridos).
            Com a análise de maior numero de isolados e cepas, o grupo T. cruzi II foi progressivamente subdividido em IIa, IIb, IIc, IId e IIe. O consenso mais recente sugere o agrupamento dos isolados de T. cruzi em seis grupos principais, numerados com algarismos romanos de I a VI.

            O T. cruzi apresenta vários estágios durante seu ciclo biológico, sendo os principais encontrados no tubo digestivo do inseto vetor os epimastigotas e os tripomastigotas metacíclicos. No hospedeiro mamífero, predominam os amastigotas, no interior de células nucleadas, e os tripomastigotas na corrente sanguínea. Os demais estágios descritos no vetor, como os esferomastigotas, e no hospedeiro invertebrado, como exemplo os epimastigotas intracelulares, são transitórios. Cada um destes estágios pode ser identificado com base em parâmetros morfológicos como posição relativa do flagelo, do núcleo e do cinetoplasto, bem como a partir de propriedades biológicas e de sua constituição protéica.
            Os amastigotas são tipicamente arredondados ou ovóides, com um flagelo que não chega e emergir do bolso flagelar e cinetoplasto próximo ao núcleo. Ocorrem no ciclo intracelular nos mamíferos, constituindo o estágio reprodutivo nestes hospedeiros. Multiplicam-se por divisão binária no citoplasma das células infectadas.

            Os tripomastigotas são formas extracelulares, alongadas, apresentam um flagelo que emerge do bolso flagelar na parte posterior da célula e a percorre na direção longitudinal até a parte anterior, ligado a membrana. O cinetoplasto está situado em posição posterior ao núcleo. Por serem encontrados no hospedeiro mamífero majoritariamente no sangue, são conhecidos como tripomastigotas sanguícolas ou sanguíneos. Nos triatomíneos são encontrados na extremidade distal do tubo digestivo, sendo denominados tripomastigotas metacíclicos. Os tripomastigotas não se reproduzem, mas são as principais formas infectantes do parasito. Apesar das semelhanças morfológicas e biológicas, tripomastigotas sanguíneos e metacíclicos diferem entre si quanto ao metabolismo e ao perfil de expressão de proteínas.
            Os epimastigotas são estágios extracelulares alongados, com cinetoplasto anterior e próximo ao núcleo. O flagelo também forma uma membrana ondulante, porém mais curta e menos evidente. São encontrados no intestino médio dos triatomíneos, onde se multiplicam abundantemente por fissão binária. São as únicas formas capazes de reproduzir-se que podem ser mantidas em cultivo axênico.

2.4 Ciclo
            O ciclo de vida de T. cruzi é digenético, com um hospedeiro mamífero e um inseto. Em ambos os hospedeiros, observa-se a alternância entre estágios reprodutivos não infectantes e estágios infectantes que não se reproduzem.

            Os insetos vetores infectam-se ao realizarem o repasto sanguíneo sobre mamíferos infectados com formas tripomastigotas circulantes no sangue. Os tripomastigotas sanguíneos são ingeridos e diferenciam-se em epimastigotas no intestino médio do inseto. Nessa fase observam-se estágios de diferenciação transitórios, como os esferomastigotas.
            Os epimastigotas multiplicam-se por fissão binária e colonizam o intestino médio e posterior do inseto. Na porção distal do tubo digestivo, os epimastigotas aderem-se as células epiteliais e inicia-se o processo de diferenciação em tripomastigotas metacíclicos, infectantes. Os estímulos para desencadear a diferenciação do parasito no tubo digestivo do vetor, conhecida como metaciclogênese, são a queda de pH abaixo de 5,5 e o estresse metabólico.

            Os tripomastigotas metacíclicos perdem a aderência ao epitélio intestinal, sendo liberados na luz da porção distal do tubo digestivo do vetor. Desta maneira, o parasito prepara-se para o encontro com o hospedeiro mamífero, no próximo repasto sanguíneo do vetor.
            Não há relatos na literatura de transmissão horizontal nem de cura em triatomíneos infectados.

             Os triatomíneos defecam durante ou pouco após o repasto sanguíneo, depositando as fezes sobre a pele do mamífero do qual se alimentam. Nas fezes dos triatomíneos infectados, encontram-se tripomastigotas metacíclicos, capazes de penetrarem no novo hospedeiro por pequenas lesões na pele ou por mucosas, mesmo íntegras.
            Ao penetrar células os parasitos diferenciam-se em amastigotas, capazes de reproduzir-se e estabelecer a infecção. Os estímulos para essa diferenciação são pouco conhecidos, podendo ser devida a uma queda de pH, a qual ocorre quando o parasito invade células de mamíferos e se aloja no vacúolo parasitóforo. Portanto, a invasão das células hospedeiras é um processo fundamental para a diferenciação do parasito em um estágio capaz de reproduzir-se.

            A invasão celular depende de múltiplas interações, bem coordenadas, entre a célula hospedeira e o parasito. Do ponto de vista do parasito, o processo de invasão de células sem grande capacidade fagocitária é ativo, dependente de energia. Durante a invaginação da membrana plasmática, há a fusão de lisossomos para formar o vacúolo parasitóforo, levando a uma acidificação da luz do vacúolo, o que submete o parasito a condições de estresse necessárias para iniciar a diferenciação em amastigotas.
            Quando o parasito invade células com grande capacidade fagocitária, a internalização pode ocorrer através de um processo semelhante à fagocitose, com a fusão dos lisossomos imediatamente depois da formação de um vacúolo com características de fagossomo, formando-se assim o vacúolo parasitóforo de conteúdo ácido.

            A membrana do vacúolo parasitóforo maduro logo se rompe, liberando o parasito no citoplasma da célula hospedeira. Livre no citosol, o parasito diferencia-se em amastigota, que inicia sua replicação por fissão binária. Cada tripomastigota que peneta uma célula hospedeira originará até 500 amastigotas.
            Depois de um número variável de divisões celulares, os parasitos diferenciam-se em tripomastigotas, passando por um estágio intermediário conhecido como epimastigota intracelular. Os tripomastigotas rompem a membrana plasmática da célula hospedeira, sendo liberados no meio extracelular. Podem invadir células vizinhas, ou atingir a corrente sanguínea, disseminando-se para outros órgãos e tecidos. Ao fazer seu repasto sanguíneo em um hospedeiro mamífero com formas tripomastigotas sanguíneas, o vetor ingere estes estágios circulantes e se infecta.

            Ocasionalmente a célula hospedeira rompe-se antes da diferenciação dos amastigotas em tripomastigotas. Os amastigotas que chegam ao meio extracelular penetram em algumas células hospedeiras, especialmente células fagocitárias.
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